
A turbulenta falência da Oi, decretada e suspensa em novembro, está trazendo à tona um escândalo silencioso: a possível transferência irregular de dezenas de bilhões de reais em patrimônio público para as teles privatizadas. Um esquema que envolveria negligência da Anatel e pode representar um dos maiores prejuízos ao erário das últimas décadas.
O problema está nos chamados bens reversíveis – imóveis, equipamentos e infraestrutura de rede que pertencem ao Estado, mas que empresas privadas podem usar enquanto operam o serviço público. Ao fim dos contratos de concessão, tudo deveria voltar para a União. Mas não é isso que está acontecendo.
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O sumiço dos bilhões
Documentos do Tribunal de Contas da União revelam números impressionantes. Dos 2,9 milhões de bens reversíveis registrados nas concessões de telefonia fixa – incluindo mais de 10 mil imóveis e milhares de quilômetros de cabos -, quase metade teve o valor zerado pela Anatel. A justificativa oficial é que esses ativos não teriam valor residual.
A realidade contradiz essa versão. Apenas o cobre dos cabos tem cotação internacional de 8,8 mil dólares por tonelada. Em 2019, a própria Anatel estimou o patrimônio total em R$ 101 bilhões. Dez anos antes, o TCU havia calculado R$ 121,6 bilhões. Onde está esse dinheiro?

Quando os contratos foram adaptados, os valores utilizados para compensação ficaram muito abaixo: R$ 5,8 bilhões para a Oi, R$ 4,5 bilhões para a Vivo, R$ 2,41 bilhões para a Claro. A diferença entre o patrimônio real e o que foi contabilizado aponta para uma sangria de recursos públicos.
“A Anatel diz que os cabos de cobre e fibra não possuem valor residual, mas há avaliações indicando que só o metal já vale bilhões”, explica a advogada Flávia Lefèvre, do Instituto Nupef, que move ações judiciais sobre o tema.
Vigilante que dormiu no ponto
O TCU foi duro ao avaliar a atuação da Anatel. Em acórdão de 2020, o Tribunal constatou que duas décadas de omissão da agência tornaram impossível rastrear todas as alienações e substituições de bens desde 1998. A conclusão é devastadora: não há como impedir indenizações indevidas nem recuperar o patrimônio dissipado.
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A defesa da Anatel chega a ser surpreendente. A agência argumentou que sua função seria apenas garantir que os serviços continuassem sendo prestados, não proteger o valor patrimonial. Como as operadoras seguiram funcionando, isso provaria que eventuais vendas de bens foram reinvestidas. Uma lógica que ignora completamente a possibilidade de empresas privadas terem embolsado esses recursos como lucro.
“Após vinte anos de negligência da Anatel no cumprimento de suas obrigações legais, já não é factível obter as informações sobre a totalidade das operações”, registra o acórdão do TCU.
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Erros de nascença
Os problemas começaram na própria concepção das privatizações nos anos 1990. Embora telecomunicações sejam serviço público constitucional, a Lei Geral de Telecomunicações criou dois regimes distintos: telefonia fixa no público, o resto no privado. E proibiu o subsídio cruzado – mecanismo que permitia usar lucros de áreas rentáveis para investir em regiões deficitárias.
Essa separação desarmou os instrumentos de universalização do acesso. O crescimento da internet coincidiu com a privatização, mas o setor de maior potencial – dados e conectividade – ficou livre de obrigações públicas. Os planos de expansão eram padronizados, exigindo os mesmos investimentos em São Paulo e na Amazônia, ignorando diferenças regionais evidentes.
No caso da Oi, os problemas se acumularam. O consórcio original reuniu investidores sem experiência no setor, mais interessados em lucro rápido. A fusão com a Brasil Telecom em 2008, vendida como criação de uma campeã nacional, só somou passivos. A aventura portuguesa de 2013 terminou em desastre quando o Banco Espírito Santo quebrou.
A hora da verdade
Hoje, a Oi mantém mais de 4,6 mil contratos com órgãos públicos, emprega 13 mil pessoas direta e indiretamente, e é a única operadora em 7,4 mil localidades. Sua importância estratégica inclui serviços para as Forças Armadas e controle de tráfego aéreo.
Enquanto isso, há suspeitas de esvaziamento patrimonial para a V.tal, empresa de fundos do BTG Pactual criada a partir da cisão da operadora. E a Oi ainda tenta obter R$ 60 bilhões da União em ações judiciais.
“A União tem que ficar com esses bens e honrar o direito dos trabalhadores que estão sem salário. A empresa não está falida, está sendo assaltada em benefício dos plutocratas”, alerta Flávia Lefèvre.
O caso expõe décadas de falhas regulatórias e um modelo de privatização que priorizou interesses privados sobre o patrimônio público. Resta saber se a Justiça conseguirá reverter ao menos parte desse prejuízo bilionário aos cofres da União.
Fonte: Outras Palavras





